Criancinhas didácticas
O admirável homem novo, praticando desporto
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Perante a insuportabilidade dos noticiários da RTP, tenho-me mantido informado através das outras estações. Mas ontem, por qualquer desígnio, aterrei no canal estatal e acabei por me quedar numa série de notícias que não são bem notícias. São mais factos. Factos alinhados duma forma pensada e objectiva no sentido de nos enquadrar na ilusão duma sociedade alinhada, asséptica, solidária e, resumidamente, idiota. Ele foi o apagão ecológico (alguém teve mesmo o desplante de informar que dois biliões - SIC - de pessoas tinham apagado a luz de casa às oito e meia da noite), o desfile dos desocupados do costume que vão para a rua gritar que o capitalismo falhou, foi a palestra de não sei quem sobre o aquecimento global, foi o professor não sei das quantas que está alarmado com os fogos que este ano começaram mais cedo por causa do aquecimento global e, ainda, o inevitável senhor Ferreira a explicar-nos porque é que devemos andar de autocarro e metro em vez do automóvel, foi, afinal, um arrazoado de ideias (?) de gente que acorda, come e se deita com uma linha de pensamento politicamente correcto e para quem nada mais conta que não seja isso mesmo.
Ontem assisti mesmo a uma peça de noticiário que considerei roçar a pornografia. Após uma alocução sobre a impreparação das pessoas e do papel que as crianças podem ter na educação dos próprios pais em ocupar os tempos livres, apareceram alguns adultos com um ar compenetrado e sadio de corpo e de ideias a perguntar às criancinhas se gostavam mais de se levantar cedo e vir para a rua praticar desporto ou ficar em casa a comer chocolates. Sem embargo de pelo menos duas das criancinhas terem dito que preferiam ficar em casa a comer chocolates, as restantes gostavam mais de fazer desporto, claro (imagine-se, que as crianças aprendem depressa…), e explicavam como é que acordavam os madraços dos paizinhos para irem com eles em vez de ficarem em casa a ler o jornal. Tudo isto no meio de repetidos comentários ao facto de que as crianças têm um papel importante na sociedade a educarem os pais. Assim mesmo, com estas palavras.
Esta cena releva de uma forma doentia de se “estar” na vida. Alguém deveria explicar a esta gente que não é por se viver em colectivo que se poderá e deverá perder a expressão mais valiosa da vida humana e que é, clara e saudavelmente, o livre arbítrio, no estrito respeito pelo individualismo e liberdade do próximo. Muito menos se deveria arrogar o direito de achar que deve pôr criancinhas a ensinar pais ignorantes e de outra época. Ter psicólogos a vir à televisão explicar às criancinhas que os pais são mandriões, que são de outra época e que está nas mãos delas, das criancinhas, ensinar os pais a caminharmos para uma sociedade melhor e mais sã é um autêntico atentado à inteligência e à liberdade das pessoas. Mas, infelizmente, a sociedade vai engordando com os guardiães dos bons costumes e da saúde de cada um. Que acordam a pensar como deverão chatear o próximo, até irem para a cama. Provavelmente porque na cama não terão ninguém para chatear ou que os chateie a eles. Vai daí lançam-se na construção do homem novo, para uma sociedade nova. E acham que devem usar as crianças. Quem melhor?
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Etiquetas: comunicação social, Portugal moderno
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