sexta-feira, junho 02, 2006

O fresco das ideias




Nos fins de Maio de 1871 havia grande alvoroço na Casa Havanesa, ao Chiado, em Lisboa [...], onde numa tabuleta suspensa se colocavam os telegrama da Agência Havas
O Crime do Padre Amaro, 1876

Lisboa. Antiga Casa Havanesa - princípio do séc. XX
[Hotel Aliance e Casa Havanesa]
Fotografia, Joshua Benoliel, ca 1913
Biblioteca Nacional

[1039]

A minha cidade está suja, cheia de carros, cocó de cão, obras poeirentas, homens gordos e de bigode a disputarem a primazia do arranque de um sinal vermelho e de mulheres de buço a saracotearem as ancas vastas e gelatinosas de gorduras perenes pela calçada à portuguesa onde, de vinte em vinte metros, há montinhos de pedras que sobraram da última obra e que nunca mais vieram buscar. Os restaurantes estão cheios de gente a comer comida gordurosa a transbordar de travessas de alumínio que deixam marcas nas toalhas de papel onde todos nós ao almoço, escrevinhamos as bases de uma qualquer estratégia de trabalho para a semana seguinte.

A minha cidade também está barulhenta, as pessoas buzinam os carros porque acham que o “próximo” é uma besta, não sabe conduzir e vai muito devagar ou porque as gajas deviam estar em casa a coser meias, mas não, gostam é de andar pela cidade a pavonear o cu e a meterem-se com o pessoal que anda a trabalhar. Há ainda os eléctricos vermelhos ronceiros com bandeirinhas portuguesas, pífias, desbotadas e surradas de anos de acumulação de humidades e poeiras das obras e que dão um ar de turismo terceiro-mundista, cheios de turistas que, mesmo assim, devem conseguir achar graça ao conjunto, porque vão tirando fotos apesar do seu ar circunspecto.

A minha cidade está quente e viscosa, suja, os prédios escorrem uma mistura escura que deve ser pó, humidade e falta do ozone que o Bush anda a destruir, que foi assim que nos ensinaram nos jornais e na TV, com externatos nos segundos andares e lojas de hortaliças no rés do chão. Os carros, cobertos de pó, são, todavia, de ano recente e circulam com alacridade, conduzidos pelos meus conterrâneos de uma forma, que parece que acabaram de os roubar.

Ainda estou em casa, num subúrbio que estes meus vizinhos acham que está um horror, mas que se mantém razoavelmente imune a estas coisas que acabei de referir, mas sei que assim que chegar ao viaduto e começar a subir a Infante Santo será esta a sensação que vou colher. Como todos os dias.

Todavia, o tempo está aprazível outra vez. As temperaturas baixaram para níveis suportáveis e o céu deixou de estar opressivamente abafado. A minha cidade voltou a adquirir aquela luz única que proporciona aquilo que eu chamo dias bons para tirar fotografias, quando os contornos dos prédios, das colinas da outra banda, da ponte e até do céu se tornam tão nítidos que pensamos que nasceu uma nova cidade. Cheia de gente que também faz a barba todos os dias e mulheres lindas. Lindíssimas, diria eu, com a graça, sorrisos, malícia e aquele andar traquinas que fazem da mulher portuguesa a prova na Terra do génio de Deus, no céu.

É, apesar de tudo, a cidade que amamos e é nela que nos sentimos em casa. Vá lá uma pessoa perceber isto...

17 Comments:

At 10:23 da manhã, Blogger anamoris disse...

Concordo plenamente consigo, por isso é que eu gostava de ir morar para o Alentejo. É difícil arranjar por lá trabalho, mas ainda não perdi as esperanças.

 
At 11:25 da manhã, Blogger M Isabel G disse...

Caro Espumante.
O importante é que se sinta bem.
Mas isso não invalida que as pessoas não tratem melhor as cidades.Dá-me ideia que não as estimam. Só o que lhes importa são as casinhas deles. Da porta para fora, a rua, o bairro, os jardins, "nada tem a ver com eles". A capacidade de mobilização dos tugas é boa para futebóis e mais nada. Pena que seja assim.
Porque vão à Austria, Alemanha, e vêm de lá encantados.
Nada é uma "fatalidade". AS coisas são assim porque nós também as tornamos assim.
Um abraço

 
At 11:38 da manhã, Anonymous Anónimo disse...

E entretanto...já reparaste que a temperatura voltou a subir? Apesar de desactualizado acho que percebi o espírito da coisa:), o que não signifique que partilhe da sensação de me sentir em casa na minha cidade. Provavelmente não será a minha cidade...

Cumprimentos nostálgicos

 
At 1:48 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

anamoris
É quse que não me despertou ainda desejo - ir morar para o Alentejo. Um dia, quem sabe?

 
At 1:51 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

Miss Pearls

Eu li este comentário uma quantas vezes. Porque me fica sempre a ideia de que em alguma coisa estamos em desacordo. Mas depois, leio, leio, leio, leio e... concordo com tudo. Talvez seja, mesmo, só impressão. O fundamental é que nos sintamos bem, como diz e que eu amo Lisboa parace ter ficado bem explícito no post. Mesmo com aquelas malfeitorias todas que referi no post.
Outro abraço para si

 
At 1:54 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

alexiaa

Sim, a temperatura subiu de novo e eu vou-me resignando a viver em banho-maria, sonhando com névoas e aragens frescas. Quanto ao facto de te sentires em casa na tua cidade que não é a tua cidade, talvez a cidade que não é tua um dia se te entregue totalmente e ter apaixones por ela para sempre, till death makes you part
:))
Beijinhios sérios (é que desta vez não houve remoques)
:)

 
At 2:09 da tarde, Blogger papoilasaltitante disse...

MAs para mim continua a ser uma cidade muito bonita.
Bjs

 
At 4:26 da tarde, Anonymous Anónimo disse...

Não houve? Ah pois não...a minha melancolia parou neste post e impediu-me de contabilizar as gralhas do "menino":)).

 
At 10:44 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

papoilasaltitante
Pois... foi o que disse, apesar de
:)))

 
At 10:46 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

alexiaa
Desconhecia, em absoluto, que a melancolia parada impedia a contabilização de gralhas. Já aprendi qualquer coisa.
Beijinhos gralhados

 
At 10:52 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

dakidali
Eu sou intrinsecamente urbano e ainda não troco Lisboa pelo tal monte alentejano que parece tentar todo o lisboeta, qual sereia de Ulisses. Gosto do bruáá da cidade, gosto do trânsito, do anonimato das grandes cidades, das escolhas alargadas de espectáculos e gosto de Lisboa, da minha cidade. Nesta fase do campeonato ainda ponho as coisas ao contrário. Viver em Lisboa e ir visitar o campo, de passagem. Mas voltar, voltar sempre :))
Embora não more na Lisboa cidade, mas vivo nela todo o dia e tenho o privilégio de o meu local de trabalho se localizar numa das mais emblemáticas áreas, com o jardim da estrela ali ao lado...
Beijinhos

 
At 9:52 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

Luisa
Há. Basta uma volta casual pelos bairos antigos de Lisboa, para as emcontrar :)

 
At 10:53 da manhã, Blogger 125_azul disse...

Inspiradíssimo, muito bem escrito/descrito. Mas gosto especialmente da parte da luz especial que incide nas mulheres lindas, em oposição às gorurosas de buço do início do texto. Fiquei mais feliz no fim do texto, sei lá! Feliz fim de semana

 
At 9:54 da tarde, Blogger 125_azul disse...

E agora que já tive tempo para mergulhar em todas as tuas praias, digo-te que continuo feliz. Quantos meninos passam o dia com a prancha às costas à espera de ondas como as do Indico quando se zanga? Estamos a entrar numa idade em que o património de memórias tem que se lhe diga, verdade? E estas, das nossas praias, são do melhor!!!

 
At 12:06 da manhã, Anonymous Anónimo disse...

Como já tantas vezes escrevi, Lisboa é tão bonita, que nem os crimes que os seus autarcas têm cometido a conseguem tornar feia. Abraço, IO.

 
At 10:01 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

125_azul
Vamos por partes. primeiro aquela parte das mulheres bonitas portuguesas. Não é treta, acho mesmo que as portuguesas são lindíssimas.
A outra parte, a das praias, tu perguntaste qual era a praia preferida dos teus comentadores. Comecei a dar uma volta pelo Espumadamente (que está quase com dois anos e com algum reumático) e descobri aqueles posts. Tenho a certeza que tenho mais posts a falar de praias, mas não te ia transcrever o blog para o teu
:))))
beijinho e bom domingo

 
At 10:15 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

IO
Cada vez que te leio (nem que seja uma linha, já que tens uma notável capacidade de síntese, não é como eu que escrevo "horrores" para transmitir uma ideia pequenina) não consigo evitar u sorriso. Porque há uma diferença substancial entre nós, qual seja a de frequentemente estarmos de acordo sem estarmos. Eu explico melhor. É impossível não estarmos de acordo qundo dizes que os autarcas cometeram verdadeiros crimes em Lisboa e noutras cidades. Muitos deles deveriam mesmo ter ido presos. Mas tu tendes a deculpar o cidadão, faz parte de ti, da tua cultura política, é o culto do cidadão, do povo, em desfavor do poder. Já eu acho que independentemnete dos crimes dos autarcas há todo um cenário na nossa sociedade, cultural, social, político, ecomómico) que a enforma no seu todo, autarcas e munícipes, ou seja, todos nós, criando o meio ideal para a balbúrdia em que muitas das nossas cidades estão mergulhadas. Em resumo, tu és ainda o contra, o reviralho, o contra-poder, o prendam-me esses gajos todos e mandem-nos para as galés e eu, tavez porque sou um bocadinho mais velho que tu, aprendi a perceber que os autarcas somos todos nós. Os autarcas, os políticos, os professores, os deputados, todos, mas todos, somos todos nós, porque é de nós que saem as classes dirigentes. Daí que, para mim, tão condenável é o autarca que comete crimes de urbanismo (agravados, sempre que há corrupção - e há)como é condenável o munícipe que passa o dia a conspurcar a cidade e a portar-se nela com uma total ausência de espírito cívico.
Beijinhos e bom domingo e já não me candidato a Lisboa para que não me condenes às tais galés
:))))

 

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